sexta-feira, 21 de março de 2014

Qual a importância e natureza da fé polarizada em Cristo? Com a palavra João Calvino


Com efeito, estas coisas todas serão fáceis de ser entendidas onde for proposta uma definição mais clara da fé, para que os leitores aprendam sua força e sua natureza. É conveniente, porém, recordar as coisas que foram previamente expostas, a saber, em primeiro lugar, como Deus, através da lei, nos prescreve o que se tenha de fazer e, se em alguma parte lhe tenhamos falhado, sobre nós paira aquela terrível sentença de morte eterna que ela pronuncia. Em segundo lugar, porque é não somente árduo, mas também acima de nossas forças, e além de toda nossa capacidade, cumprir a Lei como ele o exige, se miramos apenas a nós mesmos e ponderamos que condição seja condigna de nossos merecimentos, nada de boa esperança é deixado; pelo contrário, rejeitados por Deus, jazemos sob a perdição eterna. Em terceiro lugar, foi isto explicado, que um só é o meio de libertação que nos possa livrar de tão mísera calamidade: onde aparece Cristo o Redentor, através de cuja mão o Pai Celestial, compadecido de nós por sua imensa bondade e clemência, nos quis socorrer, se deveras não só abraçamos a esta misericórdia com firme fé, mas também nela descansamos com esperança constante. Mas, isto nos convém agora examinar: de que natureza deva ser esta fé, mercê da qual entram na posse do Reino Celestial todos quantos foram por Deus dotados por filhos. Claramente se compreende que não é suficiente em um assunto de tanta importância uma opinião ou convicção qualquer. E de tanto maior cuidado e zelo se nos deve perscrutar e investigar a verdadeira natureza da fé, quanto mais pernicioso é hoje neste aspecto o engano de muitos. Com efeito, a maioria dos homens, ao ouvir falar de fé, nada mais profundo concebe que certo assentimento comum à história do evangelho. De fato, quando nas escolas discutem a respeito da fé, afirmando simplesmente que Deus lhe é o objeto, mercê de efêmera especulação,  como dissemos em outro lugar, transviam as míseras almas em vez de as dirigirem ao seu destino. Ora, visto que “Deus habita a luz inacessível” [1Tm 6.16], faz-se necessário que Cristo se apresente como intermediário. Donde também se diz “a luz do mundo” [Jo 8.12] e, em outro lugar, “o caminho, a verdade e a vida, porque ninguém vem ao Pai”, que é “a fonte da vida” [Sl 36.9], “senão por ele” [Jo 14.6], porquanto só ele conhece o Pai, então, depois dele, os fiéis a quem o quis revelar [Lc 10.22]. 


Conforme esta maneira de ver, Paulo declara nada considerar digno de conhecer-se mais do que Cristo [1Co 2.2] e, no capítulo vigésimo de Atos, afirma haver pregado “a fé em Cristo” [At 20.21]. E, em outro lugar, introduz a Cristo assim a falar: Enviar-te-ei entre os gentios, para que recebam remissão de pecados e sorte entre os santos, mediante a “fé que está em mim” [At 26.17, 18]. E Paulo atesta que em sua pessoa nos é visível a glória de Deus, ou, o que equivale ao mesmo, que “a iluminação do conhecimento da glória de Deus resplandece em sua face” [2Co 4.6]. Verdadeiro é, de fato, que a fé atenta para o Deus único. Tem-se, porém, de aduzir também que ela “conhece a Jesus Cristo, a quem aquele enviou” [Jo 17.3], pois Deus mesmo jazeria oculto, ao longe, se o fulgor de Cristo não nos iluminasse. Para este fim, o Pai depositou com o Unigênito tudo quanto tinha, para que nele se revelasse, e assim, pela própria comunicação das benesses do Pai, expressasse Cristo a verdadeira imagem de sua glória. Se na verdade, como foi dito, impõe-se-nos ser tomados pelo Espírito para que sejamos impelidos a buscar a Cristo, assim, por nossa vez, devemos estar alertados de que o Pai Invisível não deve ser buscado em outro lugar senão nesta imagem. Em relação a essa matéria, brilhantemente falou Agostinho que, discorrendo acerca do escopo da fé, ensina que se deve saber para onde e por onde se tenha de ir. Então, imediatamente após, conclui que o caminho mais guarnecido contra todos os erros é aquele mesmo que é Deus e homem – pois, como Deus, é para onde nos dirigimos; e, como homem, é por onde  amos; ambos, porém, só se acham em Cristo. Tampouco tem Paulo em mente, enquanto prega a fé para com Deus, confundir o que tantas vezes inculca a respeito da fé: que toda sua estabilidade se encontra em Cristo. Pedro, ademais, mui adequadamente a ambos correlaciona, dizendo que por meio dele cremos em Deus [1Pe 1.21]

CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã (edição clássica, e-book): Capítulo II, Livro III, pag. 23-25. 



Felipe Medeiros

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