Ora, se nos
evocam o costume, certamente que nada conseguem, pois se agiria mui
injustamente conosco se tivéssemos que ceder ao costume. Sem dúvida que, se os
juízes dos homens fossem retos, se fazia necessário buscar o costume dos bons. Contudo,
não poucas vezes costuma acontecer mui diferentemente, pois o que se vê praticado
por muitos logo adquire o foro de costume. Além disso, dificilmente em algum
tempo as coisas humanas estejam tão bem que o melhor agrade à maioria. Portanto,
o erro público quase sempre resultou dos vícios particulares de muitos, ou,
melhor, o consenso comum dos vícios, que agora estes bons varões querem que seja
tido por lei.
Que aqueles que têm olhos vejam que não apenas um oceano de males tem inundado o
orbe, que numerosas pestes ameaçadoras o têm invadido, que tudo se precipita à
ruína, de tal sorte que, ou haverá de desesperar-se inteiramente quanto à situação
humana, ou fazer frente a tão grandes males que às vezes é preciso aplicar a
força. E o remédio é rejeitado não por outra razão, mas porque já de muito nos acostumamos
aos males.
Todavia, ainda
que o erro público tenha lugar na sociedade dos homens, no reino de Deus,
contudo, o que se ouve e se observa é só sua eterna verdade, à qual não se pode
impor a injunção de alguma extensão de tempo, de algum costume, de alguma
conjuração. Assim, outrora ensinava Isaías aos eleitos de Deus que não dissessem:
Conspiração, em referência a tudo aquilo em que o povo dizia: Conspiração [Is
8.12]. Isto é, que eles próprios não conspirassem compartilhando do sentimento
ímpio do povo, nem temessem deles o que temiam, nem se espantassem, mas, ao contrário, se
santificassem ao Senhor dos Exércitos e este fosse para eles o temor e espanto.
Agora, pois,
que lancem eles exemplos diante de nós, como queiram, não ape-nas os séculos
sucessivos, mas ainda os tempos atuais. Se santificarmos o Senhor dos
Exércitos, não seremos grandemente espantados. Ora, ainda que muitos séculos tenham
anuído à mesma impiedade, poderoso é aquele que exerce vingança até a terceira
e quarta geração [Ex 20.5; Nm 14.18; Dt 5.9]; ainda que, a um só tempo, o orbe
inteiro conspire na mesma maldade perversa, pela experiência ele nos ensinaram qual
seja o fim daqueles que transgridem com a multidão, quando a todo o gênero humano
destruiu pelo dilúvio, preservando apenas Noé com sua reduzida família, o qual,
por sua fé, e esta de um só, condenasse ao mundo todo [Hb 11.7; Gn 7.1].
Afinal, o mau
costume outra coisa não é senão uma como que peste pública, em que não menos
sucumbem quantos tombam na multidão. Ademais, conviria que ponderasse o que em
certo lugar diz Cipriano: Aqueles que pecam por ignorância, embora não podem
ser eximidos de toda culpa, contudo podem parecer de certo modo escusáveis.
Aqueles, porém, que obstinadamente rejeitam a verdade oferecida pela
benevolência de Deus nada têm que possam pretextar.
CALVINO, João. As
Institutas da Religião Cristã: Carta ao Rei Francisco I, Livro I, pag. 34
e 35
Felipe Medeiros
@felipe_ipb
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